31 de março de 2011

DA DIFÍCIL ARTE DE REDIGIR UM TELEGRAMA

 [...] Há uma história famosa a respeito de uns parentes que tinham que comunicar por telegrama, a uma senhora que estava viajando, o falecimento de uma irmã. Reuniram-se em volta de uma mesa e toca a escrever. Primeiro foi o primo que redigiu a nota. Depois de alguns minutos mostrou o resultado do seu trabalho: “INTERROMPA VIAGEM E VOLTE CORRENDO. TUA IRMÃ MORREU”. Todos leram e um dos tios fez o seguinte comentário:

– Eu acho que não está bom. Afinal de contas, vocês sabem que ela é cardíaca, está viajando e um telegrama assim pode ser um choque. – Todos concordaram, inclusive um outro primo afastado que era meio sovina e achou o telegrama muito longo:

– Depois, com o preço que se paga por palavra, isso não é mais um telegrama, é um telegrana.

Ninguém riu do infame trocadilho, mesmo porque velório não é lugar de gargalhadas. Foi a vez do cunhado tentar redigir de uma forma mais amena que não assustasse a senhora em passeio. Sentou-se e escreveu: - “INTERROMPA VIAGEM E VOLTE CORRENDO. TUA IRMÃ PASSANDO MUITO MAL”. Novamente o telegrama não foi aprovado. Um irmão psicólogo observou:

– Não sejamos infantis. Se ela está viajando pela Europa e recebe esta notícia, não vai acreditar na história de “passando mal”. Sobretudo com “volte correndo” no meio.

Também concordo – falou o primo afastado, sempre pensando no custo. Então o genro aproximou-se:

– Acho que tenho a forma ideal. – Pegou o bloco e rabiscou rapidamente: “INTERROMPA VIAGEM E VOLTE DEVAGAR: TUA IRMÃ PASSANDO MAIS OU MENOS”. Todos examinaram atentamente o telegrama. A filha reclamou:

– Vocês acham que mamãe é boba? Se a gente escrever que a titia está passando mais ou menos e que ela pode voltar devagar; ela já vai adivinhar que todas estas precauções são pelo fato de ela ser cardíaca e que na realidade a irmã dela morreu!

– Concordo plenamente – disse o facultativo da família, que era também sobrinho da senhora em questão. Resolveu, como médico, escrever o telegrama: “PACIENTE FORA DE PERIGO. VOLTE ASSIM QUE PUDER. PACIENTE TUA IRMÔ.

De todas as fórmulas até então apresentadas, esta foi a que causou mais revolta.

– Que troço imbecil - gritou o netinho, que passava pela sala no momento em que a mensagem era lida. Puseram o menino para fora da sala, mas no íntimo a família concordava com ele.

– Não, isso não. Se a gente mandar dizer que ela está fora de perigo, para que pedir que ela interrompa a viagem? – argumentou o tio.

– Também acho – responderam todos num coro de aprovação. O filho mais velho resolveu tentar. Pensou bem, ponderou, sentou-se, molhou a ponta do lápis na língua e caprichou: “SE POSSÍVEL VOLTE. TUA IRMÃ SAUDOSA PASSANDO QUASE MAL. POR FAVOR, ACREDITE. CUIDADO CORAÇÃO. VENHA LOGO. SAUDADES SURPRESA”.

– Realmente, esse bate todos os recordes! – disse uma nora professora.

– Em primeiro lugar, não é “se possível”, ela tem que voltar mesmo. Em segundo lugar, “Saudosa” tem duplo sentido. Em terceiro lugar, ninguém passa “quase mal”. Ou passa mal ou bem. “Quase mal” e “quase bem” é a mesma coisa. “Por favor, acredite” é um insulto à família toda. Ninguém aqui é mentiroso. Depois, “cuidado coração” não fica claro. Como telegrama não tem vírgula, ela pode pensar que a gente está dizendo “cuidado, coração”, já que a palavra coração também é usada como uma forma carinhosa de chamar os outros. Por exemplo: “Oi coração, tudo bem” E finalmente a palavra “surpresa” no telegrama chega a ser um requinte de crueldade. Qual a surpresa que ela pode esperar?

– Ela pode pensar que a tia está esperando neném – falou um sobrinho.

– Aos noventa anos de idade?

Abandonaram a ideia rapidamente. Seguiu-se um longo período de silêncio em que a família andava de lá para cá, pensando numa solução. Pela primeira vez estavam se dando conta de que não era fácil assim mandar um telegrama. Serviu-se o costumeiro cafezinho, enquanto cada qual do seu lado procurava uma maneira de escrever para a senhora em viagem sem que isso tivesse consequências desastrosas. De repente o irmão psicólogo explodiu num grito eurekiano de descoberta:

– Achei!

Escreveu febrilmente no papel. O telegrama passou de mão em mão e foi finalmente aprovado por todo mundo. Seu texto dizia:
“SIGA VIAGEM DIVIRTA-SE. TUA IRMÃ ESTÁ ÓTIMA”.

Soares, Jô. Da difícil arte de redigir um telegrama. O Globo, 26 Out, 1973.


Vocabulário:

Infame: desprezível; detestável.
Ponderar: pesar, analisar os vários aspectos de um assunto.
Requinte: detalhe caprichoso e excessivo.
Eurekiano: derivada de eureka, palavra que significa achei! E que é empregada quando se encontra a solução de um problema bem difícil.
Febrilmente: ansiosamente.
Sovina: avarento, mesquinho


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